Meias Verdades

Impostos municipais e
paroquialismo analítico

  DANIEL LIMA - 01/04/2003

  •  Trechos de artigo assinado pelo jornalista Irineu Masiero, na edição de 15 de dezembro de 2002 do Diário do Grande ABC, sob o título “Prato Feito”:

O abusivo aumento do IPTU de Santo André (em média, uma garfada de 62,5% nos contribuintes), prestes a ser consagrado sem maiores problemas na Câmara pela bancada governista na próxima terça-feira, com a aprovação da mudança na Planta Genérica de Valores, merece algumas reflexões.

Primeiramente, ficou clara a intenção do governo do prefeito João Avamileno em protelar até o limite a discussão do assunto com as entidades civis da cidade para que não houvesse qualquer sugestão que alterasse os planos da Administração. Como se sabe, essas entidades tinham um compromisso firmado com o então prefeito Celso Daniel para participar da elaboração da nova Planta.

Senão, vejamos: durante o primeiro semestre, houve pelo menos dois encontros com as entidades e, neles, o prefeito garantiu a participação na elaboração da Planta, o que efetivamente não aconteceu.

Nas duas últimas semanas, as entidades se encontraram com o prefeito por duas vezes e uma terceira com os secretários de Governo, Mário Maurici, e de Desenvolvimento Econômico, César Moreira.

Na primeira, a Acisa alertou ao prefeito que a nova Planta tinha sido desenvolvida sem critérios de conhecimento público, e teve a garantia de que as entidades seriam consultadas antes de sua apresentação à Câmara. No segundo encontro, poucos dias depois, o prefeito Avamileno apresentou o projeto pronto e alegou que o aumento era necessário para fazer frente a um rombo de R$ 30 milhões no Orçamento. Nessa ocasião, o acordo com a Câmara já estava firmado e a Administração tinha garantia de que o assunto estava liquidado.

No terceiro encontro, a Acisa pediu aos secretários que acatassem a sugestão das entidades de aplicar a mudança da Planta em 2004 para haver tempo para a discussão dos índices. O pedido não foi aceito, e o prato já feito foi entregue à Câmara.

Ou seja, o rolo compressor do governo ignorou todos os apelos da sociedade civil organizada e os acordos previamente firmados, e apelou para a sustentabilidade da bancada que detém na Câmara.

Em segundo lugar, ficou mais do que evidenciado que a Câmara de Santo André perdeu o sentido de representatividade do cidadão. Se um aumento de impostos deve gerar um excedente de arrecadação de R$ 40 milhões, no mínimo seria necessário um estudo de impactos dos valores da sociedade.

O artigo de Irineu Masiero segue ritual que o jornalista imprimiu à frente do Diário do Grande ABC na condição de editor-chefe, circunscrevendo o Grande ABC à geografia das elites corporativas de Santo André. Consumidor compulsório mas perdulário de informações de valor agregado muito superior ao que costuma editar, Irineu Masiero sabe pelo menos por meio da revista LIVRE MERCADO e da newsletter Capital Social, sob a responsabilidade deste autor, que as entranhas do IPTU não se limitam à vizinhança de sua residência no Bairro Jardim nem se esgotam no Paço Municipal e na Câmara de Vereadores de Santo André.

O jornalista repete ajuizamento raso que larga parcela da mídia nacional expõe quando se trata de impostos municipais, principalmente. Os erros de abordagem do artigo pretensamente professoral também invadem o terreno do virtualismo. A sociedade civil organizada a que se refere é pura ficção — provavelmente inspirada em movimentos espontâneos e convictos de comunidades de fato participativas que o Brasil colonialista não costuma patrocinar.

Fosse menos condescendente com os fatos e não instrumentalizasse devaneios teóricos sob pressão político-partidária, Irineu Masiero não conectaria a contestação a imaginários protagonistas que estariam exercendo suposta cidadania tributária. Erros de calibragem da Administração Pública de Santo André à parte, alguns pontos relevantes foram simplesmente jogados às traças no artigo de Irineu Masiero e nas coberturas sobre o assunto que ele comandou à frente do jornal.

Primeiro, artificializa um suposto movimento de rebeldia em massa em Santo André que, de fato, está limitado a contribuintes geralmente anônimos que procuram individualmente seus direitos reclamando objetivamente nos guichês competentes. O batalhão de inconformistas é um blefe de cavalo de Tróia que o jornalista ressuscita a cada temporada de novas alíquotas do imposto em Santo André.

Segundo, concentra todas as baterias de irritabilidade e de proselitismo jornalístico em Santo André. Nada mais esquizofrênico porque — independente da desastrada velocidade de recuperação dos valores — o Município dirigido por João Avamileno está em quarto lugar no ranking regional per capita do IPTU, atrás de São Bernardo, São Caetano e Diadema. Em 2001, superava apenas a pequenina Rio Grande da Serra. Informação relevante, como se observa, mas jamais mencionada pelo jornalista porque quebraria a frágil espinha dorsal de sua cantilena conservadora e seletiva.

Os casos de São Bernardo e Ribeirão Pires são emblemáticos do estrabismo analítico do jornalista: para uma inflação acumulada pelo IGP-M de 100,24% entre janeiro de 1997 e dezembro de 2002, Ribeirão Pires elevou as receitas com o IPTU em 269%, enquanto São Bernardo chegou a 196%; portanto, muito acima da inflação. Já Santo André, mesmo com o repuxo dos últimos anos, alcançou 99,45%. Menos que a inflação.

Pode parecer desprezível para alguns manipuladores, mas essa contabilidade faz parte do entendimento das políticas públicas que os administradores da região encetaram após a implantação do Plano Real.

E por que o Plano Real é um divisor de águas? Porque acabou com a farra inflacionária que facilitava a vida de gerenciadores públicos indexadores de receitas e, em contrapartida, barateadores de despesas ao usar e abusar da mecânica da desvalorização monetária no pagamento de salários dos funcionários e dos créditos dos fornecedores de produtos e serviços. Sem a correia da transmissão inflacionária, foram obrigados a administrar receitas e despesas nuas e cruas. Com isso, o manto da realidade de déficits crônicos desceu sobre os respectivos paços municipais.

Constatou-se a dimensão de como prefeitos antecessores desconsideravam as receitas do IPTU. Daí a suplementação, agora, de novas políticas de carga tributária própria. O IPTU passou a se tornar importante meio de obtenção de caixa numa região fortemente abalada pela desindustrialização emagrecedora de 34% da riqueza industrial no período fernandohenriquista de abertura econômica, entre 1995 e 2001. Uma trajetória ignorada pelo editor-chefe do Diário do Grande ABC tanto no artigo quanto na condução do veículo.

Como se o choque anafilático da estabilidade da moeda e da evasão industrial combinada com guerra fiscal não fosse suficiente, o torniquete apertou ainda mais com a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal.

É sob esse universo fiscal e tributário associado a vetores econômicos, e também observando-se o Grande ABC como um todo e não apenas como se Santo André fosse os sete pedaços de uma pizza territorial, que as controvérsias sobre o IPTU devem ser esmiuçadas. A simplificação de conceitos faz jus ao próprio título do artigo em questão. Trata-se de um prato feito da pior qualidade, porque oferece ao público leitor velhos temperos e condimentos de gosto duvidoso.

Pretende-se, também, tornar o genérico em específico quando se fala da ação do chefe do Executivo e do grupo de legisladores de Santo André que lhe dão sustentação, quando se sabe que é exatamente esse o padrão de interlocução entre Executivo e Legislativo em qualquer buraco quente do País, inclusive no Congresso Nacional. Uma briga à toa contra os fatos, os usos e os costumes que somente o pleno exercício da cidadania poderia reestruturar. Pior do que não ter cidadania municipal nem cidadania regional é instaurar ambiente de faz-de-contas tanto em uma quanto em outra.

O caso do IPTU em Santo André é novela antiga de personagens manjadíssimos. Eles desfilam sempre o mesmo enredo. A inovação nas relações entre o Poder Público regional e a suposta sociedade organizada passa necessariamente pela amplificação territorial, alcançando-se todos os municípios. E vai muito mais à frente, com as forças sociais e econômicas atuando diretamente nas planilhas de valores do imposto, através de especialistas na matéria contratados como consultores.

Sem estabelecer conexão técnica entre entidades sociais e econômicas e o Poder Público, é impossível assegurar legitimidade às queixas contra o IPTU. A quem, entretanto, interessa tanta transparência? Se se considerar que as entidades de classe empresariais — comercial e industrial — mantêm-se tecnicamente alheias ao debate e caso se leve em conta também que os Executivos municipais odeiam abrir a mala de informações pressupostamente públicas, a conclusão a que se chega é chocantemente simples: o IPTU é como chuva de verão, coincidente até na cronologia do calendário gregoriano — aparece entre o final de um ano e início do outro, provoca muito barulho, muito debate, mas jamais é levado a sério.

Pior: não consegue ultrapassar a superfície de surrados conceitos porque é isso que realmente interessa. Consagra-se como pretexto para desgastar e comprometer reputações, além de dar vazão a demagogias com roupagem de cidadania.

Esse perfil de pouca responsabilidade não condiz, entretanto, com o peso cada vez maior que o IPTU representa para os cofres públicos e nos bolsos dos contribuintes. A fragilização industrial do Grande ABC acentuadamente persistente a partir da metade dos anos 90 deixou saldo de desbalanço no mínimo incômodo: o bolo do IPTU nos sete municípios cresceu 50% em relação à arrecadação do ICMS. Em 1997, primeiro ano de governo dos prefeitos eleitos em 1996 e reeleitos quatro anos depois, o IPTU no Grande ABC não passava de 15,67% do repasse do ICMS pelo governo do Estado. Em 2002, os números revelam que o IPTU atingiu 30% do montante do ICMS. A explicação é simples: enquanto o IPTU regional superou as taxas inflacionárias com aumento nominal de 151,42%, o ICMS desnudava o quadro crítico de uma economia regional fortemente atingida pelo governo Fernando Henrique Cardoso, evoluindo nominalmente apenas 31,49%, um terço abaixo do IGP-M do período.

Como se nota, o imposto predial e territorial urbano não é bomba de neutrons restrita a Santo André, como sugere o articulista do Diário do Grande ABC. A iniciativa da administração João Avamileno de dar nova esticada nos valores, aproximando-os estimativamente das médias por habitante de São Caetano e São Bernardo e também da taxa inflacionária do período, foi um equívoco que, segundo dados oficiais, atingiu 10% do estoque imobiliário do Município.

A algazarra tutelada por candidatos derrotados em eleições passadas não retira o mérito das queixas de contribuintes atingidos por aumentos estratosféricos. Mas, por outro lado, não pode ser interpretada linearmente, como se toda Santo André tenha sido vítima de atropelamento tributário.

A contextualização regional de valores médios é, portanto, uma das funções básicas do jornalismo que não se satisfaz com a superficialidade dos manipuladores de movimentos pretensamente populares. Mais que isso: o IPTU é apenas a ponta do iceberg de uma análise ainda mais acurada do aumento do peso relativo que os impostos municipais apresentam nos últimos anos em municípios feridos pela desindustrialização inibidora de repasses de impostos estaduais e federais, bem como vulneráveis ao adensamento habitacional em regiões periféricas de parca infra-estrutura de serviços públicos.

Os municípios do Grande ABC estão encalacrados pelo refluxo na transferência de impostos que predominam no peso relativo das receitas e pela emergencialidade de recuperar impostos próprios que atingem em cheio bolsos de grandes parcelas de moradores. Nada pior, levando-se em conta as evidentes dificuldades financeiras de uma região onde a População Economicamente Ativa contabiliza perto de 250 mil desempregados e um exército de 1,2 milhão de empregados em larga escala na informalidade, no autonomismo de sobrevivência e nos micros e pequenos negócios teimosamente formais.

Embora represente apenas 0,6% no peso da carga tributária nacional, que atingiu espantosos 36,4% em 2002, o IPTU carrega material econômico e político de alto risco porque atinge diretamente o sentimento patrimonialista deste Brasil herdado de portugueses. Sem considerar a gulodice dos impostos federais e estaduais explícitos ou escondidos nos preços de produtos e serviços, o IPTU é proporcionalmente menos asfixiante aos contribuintes do que o IPVA regularmente pago a cada ano sem qualquer sinal de rebeldia.

Um confronto de valores de mercado entre o peso do IPTU para um imóvel e de IPVA para um veículo revela, na maioria dos casos, o quanto os contribuintes são extorquidos pelo imposto estadual. O custo do IPVA somado ao compulsório adicional de seguro contra furto, roubo e batidas é em média mais que o dobro do custo do IPTU. Se for estabelecida a proporcionalidade de valor de mercado, o custo tributário e até o grau de depreciação do bem, o IPVA ultrapassará todos os limites da sensatez. Mas, como se sabe, até hoje ninguém fez passeata contra os encargos adicionais que atingem a frota nacional, geneticamente sobrecarregada de impostos nas fábricas.

Fossem os gerenciadores públicos e as lideranças empresariais menos obsoletos na avaliação dos tributos, o Grande ABC poderia saltar à frente e aproximar-se de modelo que viceja com sucesso nos Estados Unidos e Canadá. Trata-se de uma espécie de fundo financeiro originário de parte da arrecadação do IPTU para aplicação em corredores comerciais de regiões centrais e periféricas de acordo com a proporcionalidade contributiva.

Mas essa não é a única operação que revolucionaria a aplicação do IPTU. É elementar que se modifique o conceito do imposto, que privilegia residências em detrimento das atividades econômicas. Nada menos que 87% do universo de 119.975 carnês de IPTU emitidos em Santo André em 2003 subdividem os valores em até R$ 500 na temporada. Em 21,63% dos casos, os contribuintes estarão isentos ou pagarão até R$ 50 no ano. Outros 16% pagarão de R$ 50 a 100.

Reduzir o peso do IPTU nas atividades econômicas, aumentar nas áreas residenciais defasadas e instituir um fundo de investimento em infra-estrutura e marketing com participação de agentes púbicos e privados — eis a receita para o imposto sair do gueto de reducionismos nada construtivos.

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